Saio para a rua de manhã e tenho o carro bloqueado por alguém que estacionou em segunda fila. A Rua de Arroios ainda tem um cheirinho a Lisboa típica. Vamos reconhecendo as caras dos vizinhos e dos comerciantes do bairro, às tantas os nomes. Sempre achei estes tiques de vizinhança old school simpáticos e humanizantes. Mas não deixam de ter um lado negro. Na Rua de Arroios este arroja-se no laissez faire, laissez passer do pessoal ter demasiado à vontade de estacionar em segunda fila. Não é incomum chegar e ter o carro bloqueado. Desatando a apitar normalmente se não aparece logo o dono da viatura aparece alguém que o conhece. E irrita-me o ar simpático com que me dizem sempre "Ah, é fulano de não sei onde, vá lá chamar que ele está acolá." ... ... respiro fundo. Eu tolero bem estas situações quando à primeira buzinadela sai um gajo da porta em frente a pedir desculpas. Já estar para ali a buzinar à espera que se dignem aparecer ou ter que os ir chamar ao restaurante da esquina faz-me perder a paciência.
Hoje lá estava eu a buzinar de novo. E com a precisão científica desta "Cosa nostra" em versão Arroios apareceu o latagão do stand da porta à frente. Simpático, pois claro. Conhecia a vizinha, pois claro. Era a senhora do quarto andar em frente, pois claro. Fosse lá tocar, pois claro! Mas não foi preciso lá vinha ela, esbaforida. E eu com os meus modos absolutamente educados e nada simpáticos lá lhe disse que achava estes comportamentos inadmissíveis.
Façamos um primeiro parêntese.
Eu tenho todo um ritual que não gosto que falhe nestas situações...
Já sabemos que se a pessoa aparecer logo é pacífico.
Ainda não sabemos mas um dia alguém descobre que, se demorarem mais do que 10 minutos, vou ali à esquadra mesmo ao lado chamar a polícia. Mas nunca me deram esse gostinho. Aparecem logo no tempo de tolerância.
Mas há todo um ritual que eu gosto de seguir quando a coisa demora mais tempo do que o aparecer logo e os tais dez minutos da polícia. Senhores vizinhos, comerciantes da zona e seus clientes, tomem nota:
Passo 1 - Eu manifesto-me algo razinza dentro da boa educação.
Passo 2 - A pessoa diz que eu tenho razão e pede desculpas.
Passo 3 - Eu replico ainda razinza que estas coisas não se fazem.
Passo 4 - A pessoa insiste que tenho toda razão e conta-me uma desculpa qualquer. Que foi tirar o pai à forca, que foi acossado por súbita caganeira, qualquer coisa. No fim remata com novo pedido de desculpas.
Passo 5 - Eu dou-me por comovido com a boa educação, humildade e veia criativa e cedo. Estou quase arrependido.
Happy ending...
Mas normalmente não é isso que acontece.
Mas isto pede novo parêntese.
Os portugueses confundem muito desculpas com desculpas. Têm aliás um talento imenso para as primeiras e absoluta ineptidão para as segundas. Confuso? Eu explico melhor.
Dar desculpas é uma coisa, pedir desculpas é outra. As desculpas pedem-se quando errámos. E as desculpas dão-se quando genuinamente algum motivo ocorre que não nos permitiu corresponder ao que em princípio seria devido. Para a malta de Direito é a diferença entre a exclusão da ilicitude e atenuação da culpa e da medida da pena. Mas a mais das vezes o povo dá desculpas, não pede. Dão-se desculpas esfarrapadas quando por medo ou arrogância não queremos assumir as nossas falhas. É neste último sentido que a malta quase toda é profissional.
Voltemos à vizinha do quarto andar.
Lá vinha ela a pedir desculpas. Por caso estes habituais da segunda fila normalmente o primeiro pedido de desculpas costumam apresentar. Uns mais envergonhados outros mais desinteressados só para nos calarem às vezes quase irritados de termos interrompido lá o que estivessem a fazer. Mas apresentam todos. Por isso é que tem pouco valor e eu continuo a protestar. Aqui já são muito raras as pessoas que correspondem. Há os que se enfadam "Já pedi desculpas, não já?", os que fogem para não nos ouvirem. Houve um atrasado mental em concreto que me abriu os braços e respondeu "Estava a almoçar, como é que queria que o ouvisse?""
A senhora de hoje também tinha desculpas. Para dar, pedir nem por isso. Que só tinha demorado 10 minutos e eu nem há cinco estava a apitar! Sacana da mulher! Tinha era que pedir desculpas! Fazer umas alegações bonitas! Que tinha sido um momento de irreflexão, que foi desespero, negligência inconsciente! Que era uma vítima da sociedade, que era primária, que várias testemunhas abonatórias tinham elogiado que era pessoas de bem, com crianças a cargo. No fim pedir justiça e uma redução da pena por confissão integral e sem reservas. Mas a gaja não, foi-se embora a resmungar que era bem feito que me sucedesse o mesmo a mim.
Tirei-lhe a matrícula. Para esta de futuro não se aplica a cláusula dos 10 minutos!